Toques

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Parafusear


Com uma chave-de-fenda, primeiro encostou em cada articulação, batendo de leve com o cabo, e verificando se estava tudo no lugar. Lá no alto, sentou na beira do telhado, certificando que não tinha como cair. As pernas dobradas, uma encostada no chão e a outra na beira do telhado, apenas apoiada pelo pé. Com as mãos abria a caixa de ferramentas e tirava uma flanela daquelas que a mãe usa na pia, na hora de arear as panelas, para que não escorregue. Coloca a flanela do lado direito, tira um estilete, faz um pequeno corte no tornozelo para encontrar os parafusos. Pega firme a chave-de-fenda e coloca na fenda do parafuso, gira, gira, gira, fazendo força; parafusos muito apertados. Retira o primeiro, o segundo, o terceiro e logo percebe que o pé já está solto. Põe os parafusos na flanela e olha pra baixo, com o pé na mão. Antes de qualquer coisa jogou um parafuso e viu como ele lentamente sumia pela cidade que mesmo morta, vive. Jogou logo depois o pé e continuou olhando-o fixamente, até sumir no chão. Assim fez com o outro pé, as pernas, as coxas, a bacia, as costelas, a mão, o antebraço e braço esquerdos. Sempre olhando o movimento, velocidade e a forma com que cada um caía. Pegou um espelho, mas não conseguiu usa-lo. Precisava da mão, antebraço e do braço esquerdo para isso. Agora era tarde, a mão, o antebraço e o braço esquerdos já estavam lá no chão e não poderia mais usa-los. Teve muita dificuldade, mas conseguiu achar a fenda do primeiro parafuso do pescoço, girou, girou, girou e guardou o parafuso na flanela, junto com os outros. Demorou mais pra encontrar o segundo parafuso, mas também conseguiu desencaixa-lo e guarda-lo. O terceiro parafuso ficava na nuca, procurou, procurou, tentou, tentou, mas não conseguiu colocar a chave. Tentou de novo e lá pela quinta vez o pescoço quebrou e a cabeça caiu no telhado. Pegou-a com cuidado e arrancou com a mão o parafuso ainda preso no pescoço quebrado. Guardou o parafuso e jogou a cabeça. E foi vendo, caindo pela cidade, tudo que os outros membros não puderam ver. A cabeça girava e por vezes até enxergava o telhado, mas não via o braço, nem o antebraço, nem a mão direitos, muito menos o peito que estava lá em cima com eles. A cabeça caiu, chegou ao chão e não pôde ver mais nada. No telhado ainda ficaram, vazios, o peito, o braço, o antebraço, e a mão direitos, do lado da caixa de ferramentas, da flanela e dos parafusos.